IDEC-Acesso à água potável
declarado direito humano
Espaço do IDEC (Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor) em Última Instância
No último dia 28 de julho, a Assembleia Geral das Nações Unidas[1],
reunida na sua 64º sessão, pôs termo a uma discussão de uma década e meia,
reconhecendo Ao direito humano à água potável e ao saneamento. Sem consenso, e
com 122 votos favoráveis, as Nações Unidas adotaram uma Resolução que
conclamamos Estados e organizações internacionais a propiciarem condições
financeiras, capacitação e transferência tecnológica para garantir saneamento e
água potável segura, limpa e acessível a todos.
A ideia do direito à água não é estranha nos documentos internacionais e
o direito foi reconhecido em vários textos normativos. A resolução da
Assembleia Geral 58/217 já lançava as bases para o reconhecimento do acesso à
água potável e do saneamento como direito fundamental, destacando que "a
água é essencial ao desenvolvimento sustentável, incluindo a integridade do
meio ambiente e a eliminação da pobreza e da fome, e é indispensável à saúde e
ao bem estar das pessoas".
A proclamação do período de 2005-2015 como Década internacional de ação,
"Água, fonte de vida", determinou a prioridade na execução de
programas e projetos relativos à água. O Conselho de Direitos Humanos também
produziu resoluções específicas sobre os direitos humanos e o acesso à água
potável salubre e ao saneamento [2].
Ainda mais específica, a Observação Geral nº 15 do Comitê dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais sobre o direito à água, de 2002, introduziu de
maneira clara os fundamentos jurídicos do direito à água. O Comitê partiu da
constatação que o exercício do direito à água é sistematicamente negado, tanto
nos países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos, e destacou que
"a tendência persistente à contaminação da água e ao esgotamento das
reservas de água e sua repartição desigual exacerbam a pobreza".
Para o órgão onusiano, o direito à água consiste em um abastecimento
suficiente, fisicamente acessível e a um custo abordável, de água salubre e de
qualidade aceitável para a utilização pessoal e doméstica de cada um. Esse
entendimento extrai-se do parágrafo 1º do artigo 11 do Pacto dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[3],
cujo enunciado elenca, em um catálogo não exaustivo, um número de direitos
decorrentes do direito a um nível de vida suficiente.
É certamente o melhor entendimento que o direito à água pertence ao rol
das garantias fundamentais para assegurar um nível de vida suficiente.
Igualmente associado ao direito "ao melhor estado de saúde suscetível de
ser alcançado", esse direito deve ser considerado conjuntamente com os
direitos consagrados na Declaração Internacional dos Direitos Humanos, em
especial o direito à vida e à dignidade, logo, é elemento fundamental à
liberdade, à justiça e à paz no mundo.
É indiscutível o caráter essencial da água na realização de vários
direitos fundamentais ao desenvolvimento e muito claramente a atividades como a
produção alimentar e a higiene, estreitamente ligadas a direitos econômicos e
sociais tais como o direito a alimentação suficiente e direito à saúde. O
Comitê vai além ao declarar que a prioridade na utilização da água deve ser
para uso pessoal e doméstico e à prevenção da fome e das doenças, bem como ao respeito
das obrigações fundamentais decorrentes dos direitos inscritos no Pacto.
Convém notar que, além da referência aos textos normativos das Nações
Unidas, em especial às resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos
Humanos, a Resolução fundamenta-se em dois relatórios, o estudo produzido pelo
Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos sobre o conteúdo e
a extensão das obrigações concernentes ao acesso equitativo à água potável e ao
saneamento consignadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos
humanos, e o relatório da expert independente Catarina de
Albuquerque, mandatária do Conselho de Direitos Humanos para examinar a questão
das obrigações referentes aos direitos humanos no que concerne o acesso à água
potável e ao saneamento.
A Comissária Louise Arbour(2004-2008), após um processo de consulta que
reuniu contribuições de Estados, organizações intergovernamentais, ONG, setor
privado, Universidades, concluiu, em 2007, que era chegada a hora de considerar
o direito à água potável e ao saneamento como um direito humano. Considerou que
os instrumentos normativos existentes permitiam especificar as obrigações dos
Estados, mas que seria necessário dar orientações práticas detalhadas sobre
pontos como: conteúdo normativo das obrigações referentes aos direitos humanos
em matéria de saneamento, obrigações pertinentes aos direitos humanos em
matéria de elaboração de uma estratégia nacional de água e saneamento; a
regulamentação de serviços privados de água e saneamento; critérios de proteção
do direito à água potável e ao saneamento em caso de interrupção de serviço,
obrigações próprias dos municípios. O mandato confiado à consultora pelo
Conselho de Direitos Humanos deriva dessas conclusões.
Merece destaque no relatório da consultora Catarina de Albuquerque a
recomendação que a decisão do Estado em delegar ou não o fornecimento do
serviço de água deve, independente da modalidade escolhida, ser tomada dentro
de um processo democrático e participativo. A expertenfatiza que todas
as partes interessadas devem ter a oportunidade de participar durante todo o
processo, monitorar e denunciar eventuais violações aos direitos humanos. Essa
participação deve ser ativa, livre e significativa e deve possibilitar uma real
oportunidade de influenciar a tomada de decisão.
A Resolução adotada é sucinta e certamente seria bom ver uma mensagem
mais clara sobre a responsabilidade dos Estados na garantia desse direito. As
recomendações dos estudos que a fundamentam devem contribuir para reforçar os
parâmetros utilizados pelo Comitê de Humanos no exame dos relatórios dos
Estados membros no que se refere ao tratamento do direito à água, no seu
reconhecimento pelas constituições e legislações nacionais e reconhecimento da
sua exigibilidade pelos tribunais.
Embora as resoluções da ONU tenham o caráter de normas multilaterais de
consenso, cujo descumprimento muitas vezes não acarreta nem as próprias sanções
previstas em sua Convenção, a nova Resolução expressa a preocupação da
Assembleia, ou seja, do conjunto de Estados soberanos que a compõem, com o fato
de que "884 milhões de pessoas no mundo não têm acesso a uma água potável
de qualidade e que mais de 2,6 bilhões não dispõem de instalações sanitárias
básicas", e destacou que cerca de dois milhões de pessoas, a maioria
crianças, morre anualmente por doenças causadas pelo consumo de água não
potável e pela falta de instalações sanitárias.
Os Estados membros também destacaram o compromisso da comunidade
internacional na realização dos Objetivos do Milênio[4],
em especial o objetivo 7, que visava, em 2000, reduzir pela metade, até2015, a
percentagem da população que não dispõe de acesso ao fornecimento de água
potável nem de serviços de saneamento básico. Apesar de algumas melhoras
sinalizadas com relação ao acesso em zonas rurais[5],
a segurança do abastecimento de água permanece um desafio, principalmente na
perspectiva das mudanças climáticas e é urgente que sejam tomadas medidas
suficientes e eficazes para garantir o exercício do direito à água potável para
todos de maneira sustentável.
Alguns temas pertinentes ao direito à água e saneamento têm preocupado
particularmente as organizações de consumidores. Além do acesso propriamente
dito, as organizações chamam a atenção para elementos fundamentais nesse
debate: propriedade, abastecimento, tarifas, regulação do setor, e meio
ambiente, destacando a importância do envolvimento da sociedade civil na
governança da água. Por essas razões, a água foi o tema da campanha do dia
mundial dos consumidores de 2004[6],
promovida pela Consumers International, organização mundial de
consumidores que congrega mais de 200 organizações de defesa do consumidor em
todo o mundo, e continua sendo tema prioritário para as organizações de
consumidores.
Embora o consumo mundial de água tenha sido multiplicado por mais de 5
ao longo do século XX, o acesso à água contínua e de qualidade permanece
desigual. Em estudos das organizações de consumidores na última década,
verificou-se que a parcela mais pobre da população frequentemente paga mais
para o acesso, precário, à água. Aqueles que não têm acesso às ligações
regulares de fornecimento de água pagam entre 10 e 100 vezes mais.
No Brasil, a realidade do acesso água potável mostra duas faces que
concorrem para um mesmo problema. O acesso à água ainda é restrito, em grande
parte em razão do valor da tarifa. Por outro lado, há um elevado desperdício. O
Brasil é um dos países com as maiores reservas de água potável do mundo,
entretanto, compõe também a lista dos que que registram o maior índice de
desperdício. Ao desperdício estrutural, entre a estação de tratamento e o
consumidor, que pode alcançar absurdos 70% em algumas capitais, como Belém e
Manaus, segundo dados do Instituto Socioambiental, soma-se o desperdício
resultante das práticas domésticas. A média de consumo domiciliar no país, 150
litros diários per capita, está 40 litros acima do recomendado
pela ONU, embora muito aquém do insustentável padrão de consumo norte americano
(600 litros) e da média europeia (entre 250 e 350 litros).
A média brasileira esconde realidades muito diferentes, nas diferentes
regiões e classes sociais, as quais comportam os extremos verificados nos
Estados Unidos e na África Subsaariana. O percentual de domicílios atendidos
por rede geral de abastecimento no total de domicílios particulares permanentes
no Brasil atinge 83,3%, enquanto que na região Norte não passa de 55,9%[7].
Acesso e qualidade nem sempre andam juntos. Testes promovidos pelo Idec
sobre a qualidade da água de abastecimento em cidades de Estados brasileiros
desenvolvidos, como Rio de Janeiro e Paraná, em 2000 e 2001, constataram que a
população recebia, em alguns locais, água contaminada por coliformes.
O Brasil dispõe de norma estabelecendo os procedimentos e
responsabilidades relativos ao controle e vigilância da qualidade da água para
consumo humano e seu padrão de potabilidade[8].
Entretanto, de acordo com uma Pesquisa realizada pelo Ministério das Cidades
entre março de 2008 e agosto de 2009 no âmbito do Programa de Modernização do
Setor Saneamento, os municípios não monitoram a qualidade da água. A pesquisa
foi feita em 1.907 municípios e apontou uma série
de dificuldades para cumprir as normas relativas à qualidade da
água. Em mais da metade das respostas, as empresas responsáveis pelo serviço de
água afirmam que têm grande dificuldade para realizar as análises determinadas
pelo Ministério da Saúde e alegam falta de recursos para o cumprimento do
disposto na norma. É responsabilidade das secretarias municipais de saúde
cobrar o cumprimento dessas normas pelas empresas de abastecimento, refazendo
análises e exigindo relatórios, mas 51% das secretarias municipais de saúde
dizem que os investimentos de sua cidade em vigilância da qualidade da água são
insuficientes.
Quando se trata de saneamento, no Brasil, como no mundo, a falta de
acesso ao saneamento básico tem repercussões nefastas na vida das pessoas, mas
permanece um dos temas mais negligenciados. Segundo o IBGE, o esgotamento
sanitário adequado (rede coletora ou fossa séptica) só atinge 73,6% dos
domicílios permanentes, o que equivale dizer que mais da metade da população
não têm acesso a esgotamento sanitário, sendo que 60% do esgoto gerado nas
cidades brasileiras é despejado em rios ou absorvido pelo solo.
A falta de acesso a saneamento básico atinge principalmente a população
mais pobre e com menor grau de instrução, perpetuando um ciclo de exclusão
social. Como consequências mais imediatas da falta de políticas públicas
adequadas que garantam esse direito fundamental temos que, na última década,
cerca de 700 mil internações hospitalares ao ano foram causadas por doenças
relacionadas à falta ou inadequação de saneamento[9],
e que sete crianças morrem todo dia no país, em decorrência de doenças
diarreicas.
Apesar da Lei 11.445/07, que contou em seu processo a discussão de
vários atores, incluindo o Idec e Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa
do Consumidor, ter trazido avanços no marco regulatório do saneamento,
determinando diretrizes gerais para a política de saneamento e princípios,
dentre os quais o da universalização do acesso, não garantiu a todos os
consumidores acesso contínuo aos serviços de saneamento.
É de se notar que o Brasil votou a favor da Resolução das Nações Unidas,
e seu representante na Assembleia manifestou-se afirmando que o direito à água
e saneamento está intrinsecamente conectado ao direito à vida, à saúde, à
alimentação e moradia adequadas, e que é responsabilidade dos Estados garantir
esses direitos a todos os cidadãos. A proposta é boa, mas necessita ser posta
em prática de maneira efetiva.
[1] A Assembleia Geral é a
assembleia deliberativa principal das Nações Unidas. Composta por todos os
Estados membros das Nações Unidas, suas Resoluções não são vinculativas
para os membros.
[3] O Pacto, adotado pela Resolução
2200A da Assembleia Geral das Nações Unidas de 16 de dezembro de 1966, teve a
adesão do Brasil em janeiro de 1992 e entrou em vigor no Brasil, na sua
integralidade, em 24 de abril de 1992.
[4] Os Objetivos do Milênio,
estabelecidos em 2000, definem um padrão de necessidades humanas que cada
pessoa, em todo o planeta, deve ver satisfeitas e os direitos fundamentais que
todos devem poder gozar: proteção contra condições extremas de pobreza e fome,
acesso à educação de qualidade, emprego produtivo e decente, acesso à saúde de
qualidade e habitação, direito das mulheres de poder dar à luz sem por em risco
suas vidas; um mundo onde o desenvolvimento sustentável é uma prioridade e onde
homens e mulheres estão em pé de igualdade.
[5] Relatório dos Objetivos do
Milênio junho 2010 -
http://www.un.org/millenniumgoals/pdf/MDG%20Report%202010%20En%20r15%20-low%20res%2020100615%20-.pdf
Página visitada em 05/08/2010.
[6] Os documentos da campanha estão
acessíveis no site da Consumers International http://www.consumersinternational.org/Templates/Internal.asp?NodeID=90183&int1stParentNodeID=89650&int2ndParentNodeID=90546
[9] Fonte: SIH (Sistema de
Informações Hospitalares) e SUS (Sistema Único de Saúde), citados por Instituto
Terra Trata
Data de acesso:17/03/2013