A má-fé como elemento
subjetivo imprescindível à caracterização do ato de improbidade administrativa
previsto nos artigos 10 e 11 da Lei nº 8.429/92
Examina-se a necessidade de demonstração da má-fé do
administrador público como elemento essencial à caracterização do ato de
improbidade administrativa previsto nos artigos 10 e 11 da Lei nº 8.429/92.
Resumo: Examina-se a necessidade
de demonstração da má-fé do administrador público como elemento essencial à
caracterização do ato de improbidade administrativa previsto nos artigos 10 e
11 da Lei nº 8.429/92.
Palavras-chave: Ação
civil pública; improbidade administrativa; elemento subjetivo; dolo; má-fé.
A doutrina e jurisprudência pátrias há muito vêm buscando
adequar as disposições da Lei n° 8.429/92 à Carta Constitucional,
principalmente pela grave falha do seu art. 5° de considerar ímprobas as
condutas culposas dos agentes públicos.
Marcelo Figueiredo[1] se debruça sobre a questão
de forma bem aprofundada:
“De fato, ao deitarmos alguma reflexão sobre o dispositivo
comentado, algumas apreensões nos vêm à mente. A primeira relativa à
elasticidade do conceito legal de ato de improbidade administrativa. É certo
que a Constituição (art. 37, §4°) determina que os atos de improbidade
administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função
pública,a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstos em lei. Contudo, a lei integradora da vontade
constitucional foi além do razoável ao dispor que ‘constitui ato de improbidade
administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa ou
culposa...’. Ao que parece, o legislador infraconstitucional levou longe demais
o permissivo da Lei Maior, ausente proporcionalidade e razoabilidade no
dispositivo legal. Assim, se não inconstitucional, o dispositivo deve ser
interpretado conforme a Constituição.
(...) Enfim, é preciso abrandar o rigor legal, ou, por
outra, amoldá-lo ao espírito constitucional. A preocupação não é meramente
acadêmica ou fruto de devaneio intelectual. Ao contrário, o agente que violar o
art. 10 sofrerá as conseqüências do art. 12. I, severas como vimos de ver. Tal
linha de raciocínio, segundo cremos, deve presidir a interpretação de toda a
lei, que falha, ora por erros de redação, má técnica, ora pelo conteúdo.”
(grifos nossos)
Como se vê, a lei infraconstitucional acabou por abraçar,
erroneamente, a teoria da responsabilidade objetiva do agente público,
equiparando as condutas dolosas, devassas, imorais, às condutas praticadas com
boa-fé, sem qualquer intenção de causar prejuízo ao erário. Bem diferente ensina
José Afonso da Silva[2] ao afirmar que “ímprobo administrador é o devasso da
Administração Pública”. Apoiando-se em tal afirmação, Aristides
Junqueira Alvarenga[3] extrai firme lição:
“É também de José Afonso da Silva a afirmação de que todo ato
lesivo ao patrimônio agride a moralidade administrativa, mas nem sempre a
lesão ao patrimônio público pode ser caracterizada como ato de improbidade
administrativa, por não estar a conduta do agente, causador da lesão, marcada
pela desonestidade. Assim, a conduta de um agente pode ir contra o
princípio da moralidade, no seu estrito sentido jurídico-administrativo, sem
contudo, ter a pecha de improbidade, dada a ausência de comportamento desonesto
– atributo esse que distingue a espécie (improbidade) do gênero (imoralidade).
Se é assim, torna-se difícil, se não impossível, excluir o
dolo do conjunto de desonestidade e, consequentemente, do conceito de
improbidade, tornando-se inimaginável que alguém possa ser desonesto por mera
culpa, em sentido estrito, já que ao senso de desonestidade estão jungidas as
idéias de má-fé, de deslealdade, a detonar presente o dolo.” (grifo nosso)
Mauro Roberto Gomes de Matos[4], também em
referência à afirmação do festejado mestre acima citado, conclui:
“A devassidão a que se refere José Afonso da Silva,
caracterizadora da improbidade administrativa, por certo, deverá vir contida na
índole da conduta do agente público, ou na vontade de lesar o erário, pois do
contrário falta tipicidade para enquadrar o ato culposo em ímprobo. Nem toda
lesão ao patrimônio público pode ser considerada reveladora de um ato de
improbidade administrativa, pelo fato de a conduta do agente público ser o
elemento caracterizador do ilícito.” (grifo nosso)
Perceba-se que a demonstração da má-fé como elemento
subjetivo caracterizador do ato de improbidade administrativa está adstrita às
tipificações do art. 11 da Lei nº 8.429/92, que cuida dos atos que atentam
contra os princípios da Administração Pública, e do art. 10 do mesmo diploma
legal, para se aferir a responsabilidade (ou não) do agente na eventual
hipótese de comprovação de dano ao erário. No que pertine à previsão do art.
9º, é evidente que o enriquecimento ilícito (elemento objetivo) é suficiente à
comprovação do ato de improbidade.
Neste diapasão, deve ser destacado que a gestão pública
envolve situações de fato que em muitas oportunidades não encontram previsão
específica nos inúmeros diplomas legais e regulamentos que regem a atuação do
agente público na aplicação de recursos do erário, mas que exigem uma atuação
imediata do administrador, sob pena da eventual omissão ou atraso causar um
prejuízo irreparável à população, como, por exemplo, a suspensão dos serviços
de saúde ou de segurança pública.
Situações como essas já foram analisadas pelo STJ como
não-tipificadoras de ato de improbidade administrativa, verbis:
ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DE
VIGILANTE SEM CONCURSO PÚBLICO COM FUNDAMENTO EM LEI LOCAL. NÃO
DEMONSTRAÇÃO DE MÁ-FÉ.
1. Cuida-se na origem de Ação Civil Pública por ato de
improbidade administrativa consubstanciado na contratação de servidor público
por meio de contrato administrativo temporário constantemente renovado.
2. O reconhecimento da tipificação da conduta do réu como
incurso nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa requer a
demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado no dolo para os tipos
previstos nos arts. 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do art. 10,
todos da Lei n. 8429/92.
3. A contratação ou manutenção de servidores públicos sem a
realização de concurso público viola os princípios que regem a Administração
Pública.
4. Todavia, o caso dos autos mostra-se como uma exceção à
regra, uma vez que a jurisprudência desta Corte já decidiu, em situação
semelhante à dos autos, qual seja, de nomeação de servidores por período
temporário com arrimo em legislação local, não se traduz, por si só, em ato de
improbidade administrativa.
5. A prorrogação da contratação temporária, com fundamento em
lei municipal que estava em vigor quando da contratação - gozando tal lei de
presunção de constitucionalidade - descaracteriza o elemento subjetivo doloso.
Precedentes: REsp 1.231.150/MG, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma,
julgado em 13.3.2012, DJe 12.4.2012.; AgRg no Ag 1.324.212/MG, Rel. Min. Mauro
Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 28.9.2010, DJe 13.10.2010.Agravo
regimental improvido.
(AgRg no AgRg no AREsp 166.766/SE, Rel. Ministro HUMBERTO
MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/08/2012, DJe 03/09/2012)
No caso concreto trazido à baila no julgado acima transcrito,
afigura-se impensável qualificar o ato de contratação como eivado de má-fé,
como retrato de conduta desonesta, praticada com a intenção de lesar o erário.
Por fim, deve ser registrado que a eventual aprovação da
despesa perante o Tribunal de Contas, apesar de não afastar a incidência da lei
de improbidade, nos termos do seu art. 21, II, afigura-se como mais um elemento
evidenciador da ausência de má-fé na aplicação de recursos públicos.
No STJ, o entendimento pela necessidade de comprovação de
má-fé encontra-se pacificado, como se observa dos julgados abaixo transcritos:
ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL
RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DO ELEMENTO SUBJETIVO, ENRIQUECIMENTO ILÍCITO OU DANO AO ERÁRIO.
AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. Embargos de declaração admitidos como agravo regimental,
em razão de seu manifesto caráter infringente. Aplicação do princípio da
fungibilidade recursal.
2. Inexistindo comprovação de que os agravados
tenham agido com dolo ou má-fé, enriquecido de forma ilícita ou de que o ato
impugnado tenha causado prejuízo ao erário, não há falar em improbidade administrativa,
devendo o acórdão recorrido ser mantido por seus próprios fundamentos.
3. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental,
ao qual se nega provimento.
(EDcl no REsp 1260814/RN, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA,
PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/10/2012, DJe 25/10/2012)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. ART. 535 DO CPC. ALEGAÇÃO
GENÉRICA. SÚMULA 284/STF. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. INEXISTÊNCIA DE
CARACTERIZAÇÃO DE DOLO E MÁ-FÉ.
1. É assente nesta Corte Superior o entendimento segundo o
qual, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do réu como incurso
nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a demonstração
do elemento subjetivo, consubstanciado no dolo para os tipos previstos nos
arts. 9º e 11 e, ao menos, pela culpa, nas hipóteses do art. 10.
2. No caso dos autos, as premissas fáticas assentadas pela
origem dão conta de que o ex-prefeito demitiu irregularmente servidores
públicos, sob o entendimento de "estar atendendo às disposições da Lei de
Responsabilidade Fiscal, ao reduzir as despesas com pessoal
desnecessário". Não havendo comprovação do dolo de prejudicar os lesados,
ou favorecer terceiros, dano ao erário, e que, tampouco, "o agente público
agiu visando outro fim que não o bem público".
3. A má-fé, consoante cediço, é premissa do ato ilegal e
ímprobo; e a ilegalidade só adquire o status de improbidade quando a conduta
antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública,
coadjuvados pela má-intenção do administrador. Precedente: REsp
1.149.427/SC, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 17.8.2010, DJe
9.9.2010.
Agravo regimental improvido.
(AgRg no AREsp 81.766/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS,
SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2012, DJe 14/08/2012)
Por todo o exposto, resta demonstrado que a caracterização do
ato de improbidade administrativa tipificado nos artigos 10 e 11 da Lei nº
8.429/92 é condicionada à comprovação da má-fé do agente público, ao passo em
que a hipótese do art. 9º do mesmo diploma legal dispensa o elemento subjetivo.
Notas
[1] Probidade Administrativa –
Comentários à Lei 8.429/92 e legislação complementar. São Paulo: Malheiros, 4ª
ed.
[2] Curso de Direito
Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 32ª ed..
[3] Improbidade Administrativa
– Questões Polêmicas e Atuais. São Paulo: Malheiros.
[4] O limite da Improbidade
Administrativa. Rio de Janeiro: América Jurídica.
Data de acesso:14/03/2013
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