Interpretação
e racionalidade jurídica: teorias convincentes, mas equivocadas
Atahualpa
fernandez e marly fernandez
ATAHUALPA
FERNANDEZ Membro do Ministério Público da União /MPT; Pós-doutor em Teoría
Social, Ética y Economia pela Universidade Pompeu Fabra; Doutor em Filosofía
Jurídica, Moral y Política pela Universidade de Barcelona; Mestre em Ciências
Jurídico-civilísticas pela Universidade de Coimbra; Pós-doutorado e Research
Scholar do Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa
Barbara; Research Scholar da Faculty of Law/CAU-
Christian-Albrechts-Universität zu Kiel-Alemanha; Especialista em Direito
Público pela UFPa.; Pós-doutorado em Neurociencia Cognitiva - Universitat de
les Illes Balears/Eapanha; Professor Colaborador Honorífico (Livre Docente) e
Investigador da Universitat de les Illes Balears/Espanha (Cognición y Evolución
Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y
Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar
y Sistemas Complejos/UIB.
MANUELLA MARIA FERNANDEZ Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales/
Universitat de les Illes Balears-UIB ; Doutoranda em Direito Público/
Universitat de les Illes Balears-UIB; Mestre em Evolución y Cognición Humana/
Universitat de les Illes Balears-UIB; Research Scholar, Fachbereich
Rechtswissenschaft /Institut für Kriminalwissenschaften und Rechtsphilosophie,
Johann Wolfgang Goethe-Universität, Frankfurt am Main/ Deutschland;
Pós-doutorado (Filosofía y Filogénesis de la Moral) / Laboratório de
Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas
Complejos /UIB.
Inserido
em 05/08/2012
Parte
integrante da Edição no 1002
Código da
publicação: 2597
“O verdadeiro problema das teorias hermenêuticas e da argumentação jurídica é
que levam o intérprete a pensar que sabe algo que em realidade desconhece. E
como há maneiras alternativas de interpretar o que encontram na norma, os
intérpretes parecem ser bastante adictos a encontrar as justificações e
argumentos que lhes convêm para afilar, limar e alterar seletivamente a
mensagem normativa: não tanto pelo uso indiscriminado e vicioso da denominada
“Katchanga real!”, mas principalmente por meio de uma diarréia argumentativa
incessante”. A.F.
A interpretação representa um verdadeiro banco de provas para o jurista. Não é
por acaso que constitua, falando com propriedade, matéria de ensino: sob o
domínio ordenador da razão, é tratada como o campo dos conceitos claros e
distintos, de regras e critérios, mediante os quais um acervo de métodos com
nomes elusivos e incertos encontra sua aplicação rigorosa. É o lugar das
técnicas e das formas de argumentação articuladas e reconstruídas sobre a mesa
dos consumados operadores práticos do direito, em benefício de quantos preferem
ver a tarefa interpretativa como uma atividade puramente racional, um aparato
metodológico constituído por um conjunto de noções e de instrumentos forjados
para levar a cabo processos de decisões e conseguir resultados de maneira
ordenada, controlada, ponderada, razoável, objetiva, imparcial, consciente e,
na medida do “possível”, neutra.
Tomar decisões, por outro lado, é o resultado do ato de interpretar e usar a
norma para orientar a conduta humana entre múltiplos cursos de ação possíveis.
Tais eleições determinam o modo em que o intérprete autorizado atua no mundo e
seu grau de êxito em fazer frente aos conflitos da vida social. E embora a
norma não estabeleça a forma das eleições individuais uma por uma, dispõe ou
pode criar mecanismos de processo de informação que se reproduzirão fiavelmente
como resultado de classes particulares de eleições em casos e situações
específicas.
Dito isto, resulta mais evidente o por que em realidade não interessa o estudo
dos limites, das restrições e dos condicionantes da capacidade humana de
interpretar e de tomar decisões em si; o que realmente interessa é a
compreensão – ainda que aproximada - dos critérios, regras, estratégias e
métodos de interpretação e de tomada de decisão, considerando as situações e
casos concretos em que podem funcionar. Todo um aparato metodológico de
técnicas de interpretação jurídica posto a disposição do operador jurídico com
a finalidade de (1) obrigar a norma silenciosa a “falar” e (2) eliminar,
camuflar ou subtrair qualquer resultado ou decisão devido às perspectivas
individuais, limitadas, singulares e/ou particulares do sujeito intérprete.
Assim que para as principais teorias sobre a interpretação jurídica, o ato de
manobrar o processo para tomar decisões corretas gira ao redor de um axioma
onipresente: os seres humanos são racionais. De acordo com esta concepção que
constitui os cimentos de grande parte das teorias jurídicas contemporâneas, os
intérpretes (nomeadamente os juízes) são e/ou devem (o que pressupõe que podem)
ser racionais e objetivos em seus juízos de valor acerca da justiça da decisão.
Quer dizer, atendidos determinados princípios, regras e critérios
metodológicos, estão capacitados para examinar o melhor que podem todos os
fatores pertinentes ao caso e ponderar, sempre de forma aparentemente neutra,
imparcial, razoável e não emocional, o resultado provável que segue a cada uma
das eleições potenciais. A opção preferida (“justa”) é aquela que melhor se
adequa aos princípios, métodos, regras ou critérios de racionalidade,
razoabilidade e objetividade por meio dos quais a decisão foi gerada.
Esta sobrevalorada concepção da racionalidade jurídica está baseada na premissa
de que, como humanos, estamos todos dotados de um elevado grau de sentido comum
para prestar atenção às coisas que nos rodeiam, que nossa memória é mais
consciente, controlável e fiel do que é em realidade e que a capacidade de
racionalizar e/ou ponderar é um indicador fiável da precisão de nossos juízos.
O único problema é que esta entranhada suposição da racionalidade jurídica é
equivocada, não somente porque os operadores reais do direito não são tão
racionais como se pretende (e tão pouco funcionam como se o fossem), senão
também pelo fato de que: a) simplifica ao extremo, artificializa e distorce a
análise dos múltiplos fatores e influências, inatas e adquiridas, que
condicionam nossas interpretações e nossas decisões; e b) elude a evidência de
que a razão não cria valores, “sino que se configura en torno a ellos y los
lleva hacia nuevas direcciones” (Simon Blackburn, 2003).
De fato, a principal causa do desgaste metodológico presente no direito é que
parece que há poucas, ou nenhuma, interpretação independente do intérprete. E o
mais expressivo sintoma desse desbastado cansaço está relacionado com a falta
de revisão do conceito mesmo de racionalidade, procedente não de críticas
hermenêuticas senão científicas, e em particular das ciências cognitivas da
racionalidade. Desde que Aristóteles falou dos humanos como "animais
racionais", formamos (e temos) uma imagem de nós mesmos baseada no mítico
“ator racional”, apenas influenciado por pequenos e circunstanciais
inconvenientes emocionais. A ciência cognitiva afirma justamente o oposto.
Mostra que os seres humanos são (predominante e prioritáriamente) uma
desordenada coleção de “módulos” emocionais que afetam e alteram de maneira
decisiva o entendimento, e cujo acesso imediato, automático e não consciente a
um vasto armazém de memórias é constantemente utilizado como base de decisão.
Temos uns poucos “módulos” para processar a lógica e a busca racional de
objetivos, mas são lentos, energeticamente custosos e raras vezes empregados
(D. Kahneman, 2011). Nas palavras de Scott Atran (2011), que a razão sozinha
basta e é suficiente para interpretar, justificar, aplicar ou superar as
exigências e imposições de normas, princípios e valores`sagrados´ ”sólo lo
conciben los académicos descarriados y algunas gentes del gremio de los
juristas. Nadie más”.
Desde esta perspectiva, as modernas teorias hermenêuticas, de interpretação e
de argumentação jurídica não nos informam absolutamente nada sobre o
"equipamento mental" que necessitamos para superar realmente os erros
de raciocínio (ou até mesmo os contraproducentes), na medida em que fomentam um
injustificado excesso de confiança metodológica e reforçam a ilusão de validez
e eficácia de nossa racionalidade. O processo de realização do direito não é, e
jamais será predominantemente um sistema teórico-racional de pensamentos, ao
menos enquanto a genética não produza inéditos milagres nos cérebros das
pessoas.
E não pode sê-lo pelo simples fato de que toda interpretação consiste em
eleições sobre distintas possibilidades que tem lugar de algum modo no cérebro
do intérprete, em uma mente que sempre está “llena de remembranzas irrevocables
y de pensamientos impensables, que toman parte en todos sus juicios como
fuerzas que no se pueden destruir” (O. W. Homes, 1861). Uma evidência que, por
si só, já seria suficiente para recomendar que as interpretações deveriam levar
a seguinte advertência: “Os pontos de vista expressados não são necessariamente
os da racionalidade a que dou culto”.
Em realidade, uma interpretação/decisão não costuma ser mais racional que a
vontade, as emoções e o conhecimento de quem a produz. Os atores principais da
atividade interpretativa que determinam sua dinâmica são indivíduos que
basicamente respondem às orientações de seus genes e de seus neurônios, assim
como de suas experiências, memórias, valores, aprendizagens, emoções, intuições
e influências procedentes do ambiente e da mentalidade comum. É claro que a
hermenêutica, a racionalidade e a lógica seguramente ajudam a interpretar e
aplicar direito, e não se deve desdenhar a importância de transformar nossos
vagos instintos em um conjunto explícito de argumentos jurídicos – ainda que
levem a maus resultados, não porque os seres humanos são incrivelmente
deficientes no uso da razão, senão porque sistematicamente se esforçam por
argumentos que justificam e confirmam suas crenças e/ou suas ações (H. Mercier,
2012). Mas nossas emoções e intuições morais, sem as quais não seríamos sequer
capazes de valorar, existem muito antes que os teóricos e filósofos do direito
propusessem as primeiras teorias e métodos para orientar a interpretação
jurídica.
Assim que se queremos insistir na racionalidade, de que não devemos “abrir las
puertas de la bodega para dejar que salgan los fantasmas de la irracionalidad o
las alimañas del decisionismo” (A. Nieto, 2009), adiante. Ainda assim, é
necessário saber de antemão que a racionalidade custa, que raramente é uma
atividade fácil, que ativá-la requer esforço mental (custoso em tempo, energia
e calorias), que pensar é um trabalho duro, que nossas vidas diárias estão
organizadas para economizar o pensamento e que um intérprete racional não é
aquele que tem uma visão do mundo mais consistente ou que é capaz de contar as
melhores histórias.
Tão pouco é mais racional quem rechaça as emoções em nome de uma inexistente
razão desencarnada, senão aquele que é capaz de examinar seus próprios
prejuízos e de assumir que muitos fatores (conscientes ou não) interagem,
competem e restringem a decisão que estabelece o cérebro. Como sugere David Hull
(2011), a regra que parecem seguir os seres humanos consiste em comprometer-se
com o pensamento racional somente quando falha todo o demais; e normalmente nem
isso.
Esta concepção mitigada e revisada da racionalidade rebaixa o tom triunfalista
e evangélico característico das teorias hermenêuticas e da argumentação
jurídica atuais. Argumentar publicamente como se o chamado "pensamento
racional" constituísse a essência da interpretação e do discurso jurídico
reflete expectativas pouco realistas. A razão por si só não move a nada: “Isto
é justo ou injusto?”, se pergunta nossa mente primitiva a cada instante
interpretativo...”milésimas de segundo después tratamos de esbozar un juicio
razonado”. (H. Mercier, 2011). Relâmpagos irracionais de intuição seguidos por
uma argumentação rigorosa e motivada pela capacidade das pessoas em encontrar
explicações e justificações ad hoc extraordinariamente bem, com rapidez,
segurança e eficácia. Animais irracionais, como qualquer outro, que julgam e
valoram movidos por seus instintos sem necessidade de sabê-lo ou pensar neles,
mas com um verniz de racionalidade sobre os velhos móveis que adornam nossas
emoções.
Dito de outro modo, a eleição deliberada requer sempre uma conjunção de razão e
desejo que nenhum antecedente de educação pessoal, nenhuma lealdade
profissional ou metodologia detalhista é capaz de refrear. Os instintos, a
intuição, a memória, as emoções e as experiências de outros, transmitidas
formal e informalmente em forma de normas e instituições, geram e modulam
nossos desejos, nossas preferências e nossas crenças. E dado que a
interpretação depende tanto do que passa na mente do intérprete como de sua
relação – sua relação causal – com o que passa no mundo, a razão, por suas
próprias limitações, deve fazer uso deste conhecimento, e não usurpá-lo e
destruí-lo. Em resumo: o uso da razão, ademais de também encontrar-se limitado
pela falta de informação e de tempo, implica diversos fatores de distinta
importância e probabilidades que interagem até derivar em uma solução/decisão
adequada ou satisfatória (não necessariamente a melhor).
Portanto, o principal (e grave) problema, insistimos, reside no fato de que os
atuais modelos teóricos desenvolvidos sobre a tarefa hermenêutica e a própria
unidade da realização do direito pecam ao ignorar a influência dos múltiplos
fatores (inconscientes e irracionais, inatos e adquiridos) que condicionam os
processos de tomada de decisão jurídica, construídas que estão a partir de
premissas alheias a qualquer escrutínio empírico-científico minimamente sério,
carentes da menor autoconsciência com respeito à realidade neuronal que nos
constitui e dos problemas filosóficos e neuropsicológicos profundos que implica
qualquer teoria da ação intencional humana.
Descuidam da evidência de que qualquer conduta humana, toda experiência humana,
incluída a própria experiência hermenêutica, tem um "substrato"
neurobiológico, e que, como tal, em tema de atividade interpretativa, é
necessário perguntar-se acerca da relevância e utilidade que os métodos
jurídicos podem ter sobre a desejada racionalidade, objetividade e neutralidade
dos intérpretes autorizados. E ao buscar a resposta a essa pergunta há que
descartar umas soluções puramente especulativas (racionais, razoáveis e/ou
ponderadas) que possam obter-se pela via de certos “métodos-receitas”. A
“consciência” do intérprete, que deve ser necessariamente levada em conta, não
dispõe apenas do “componente” do conhecimento, senão também do “componente”
emotivo-volitivo: sentimentos, intuições, ideologias, prejuízos, experiências
pessoais, memória e demais.
Isto implica que razão e emoção precisam trabalhar juntas para criar o
comportamento inteligente. Daí por que, neste particular, as ciências
cognitivas chegaram à conclusão de que não se pode tomar uma decisão sem emoção
e de que todas as decisões supostamente lógicas e razoáveis estão contaminadas
por uma emoção. É certo que, em tema de interpretação jurídica, a lógica pode
indicar distintas possibilidades e rechaçar as variantes absurdas; mas a razão
não serve quando há que eleger entre duas o mais variantes que objetivamente
apresentam idêntica utilidade.
Nesses casos, onde não existe uma preferência (emocional), a mente é incapaz de
analisar, avaliar a informação disponível e antecipar as consequências
possíveis da decisão. Como assinala Damasio (1994), a tomada de decisões
implica, a nível cerebral, uma rápida representação mental da série de
possíveis situações e das consequências vinculadas a tal decisão e nesse
processo se ativam os componentes emocionais das alternativas avaliadas,
jogando estes um papel importante na eleição da decisão mais vantajosa. Quer
dizer: ou existe emoção ou não existe decisão (Haidt, 2006; Eagleman, 2011;
Marcus, 2011; Damasio, 1994; Gazzaniga, 2005; LeDoux, 1998; Perna, 2004; Owen
Jones, 2009).
Assim que o desejo de proporcionar uma justificação exaustivamente racional da
maneira em que conduzimos nossas interpretações é falacioso e descabelado. A
fantasia hiper-racionalista de demonstrar que todas nossas ações (e
interpretações) se baseiam em premissas exclusivamente racionais é incoerente e
devemos abandoná-la (H. Frankfurt, 2004). Nossos desejos, nossos prejuízos e
nossas emoções intervêm sempre em maior ou menor medida em todo o processo de
interpretação e de tomada de decisão em concreto, ou, para ser mais preciso, a
articulação co-constitutiva da afetividade e da razão intervêm em toda a
interpretação (compreensão), justificação e aplicação de uma vontade alheia,
sobretudo naqueles domínios em que o “caso concreto”, o “caso da vida real”,
surge ao intérprete com uma variedade e uma multiplicidade desconcertantes.
E se admitimos que o direito é um conjunto de hábitos interpretativos
coletivamente desenvolvidos, não resulta difícil concluir que as atuais teorias
acerca da hermenêutica, da interpretação e da argumentação jurídica parecem
ser, hoje, a mais flagrante e patética expressão de um estridente anacronismo,
pelo simples fato de que partem de um completo, absoluto e injustificável
desconhecimento do funcionamento do cérebro humano. Continuamos a manejar-nos,
em tema de hermenêutica e interpretação jurídica, de filosofia e ciência do
direito do século XXI, baseados em uma psicologia humana impossível, com uma
idéia de natureza humana procedente do século XVII e com os métodos do século
XIX. Continuamos insistindo em formular construções doutrinárias e/ou propostas
metodológicas cuja principal característica e “utilidade” são a de servir como
mero mecanismo de legitimação posterior à decisão. Continuamos a permanecer
limitados à tentativa de outorgar “autoritariamente” às decisões jurídicas um
aspecto de “racionalidade”, de “razoabilidade”, de “objetividade” e valor
epistemológico que do contrário jamais teriam. À semelhança “de una cortesana,
la racionalidad está a disposición de cualquiera. No hay argumentación que no
pueda ser defendida acudiendo a lo «racional» (o, en todo caso, a lo
«razonable»)”. (Haba, 2011)
Por mais difícil que pareça, é preciso aceitar que a interpretação jurídica,
tal como a conhecemos, é uma atividade levada a cabo por seres (cérebros)
humanos com suas próprias necessidades, crenças, visões (prévias) do mundo,
opiniões, amores, ódios, desejos, preferências, circunstâncias, problemas...,
que, de uma forma ou outra, incidem e condicionam o resultado de suas
interpretações, destinadas a transmitir suas mensagens a um público específico
em uma época e um lugar determinados. Cada um dos intérpretes do direito é um
ser humano, cada um deles, com suas limitações, deficiências e imperfeições, tem
algo diferente a comunicar, cada um intenta transmitir sua visão de mundo a
partir da construção de uma justificação acerca de sua desejada interpretação.
Cada um deles, de certo modo, muda, altera ou transforma os textos que
interpreta.
Esta simples evidência ilustra eficazmente os curiosos malabarismos que os
intérpretes podem chegar a fazer com os critérios, princípios, regras ou
métodos interpretativos para inferir as decisões que valoram como positivas e
que trabalham a favor de suas preferências, crenças e desejos, torcendo de
forma idiossincrática o significado que atribuem à informação que tomam do
mundo. Como há maneiras alternativas de interpretar ou “moldurar” o que
encontram na norma, os intérpretes parecem ser bastante adictos a encontrar a decisão
(justificações e argumentos) que lhes convêm, um objetivo que na maioria das
vezes lhes leva a afilar, limar e alterar seletivamente a mensagem normativa:
não tanto pelo uso indiscriminado, imoral e vicioso da “Katchanga real!”, mas
principalmente por meio de uma diarréia argumentativa incessante. Nestas
tendenciosas inclinações das interpretações relativamente sutis podem
encontrar-se muitos dos defeitos mais significativos da pretendida
racionalidade jurídica.
Também há que recordar, neste particular, outros dois fatores importantes.
Primeiro, que estamos todos predispostos a ver ordem, padrões e significado no
mundo, e que nos resultam insatisfatórios a aleatoriedade, a falta de
previsibilidade e de sentido, os caprichos da irracionalidade, o caos da
incerteza e a falta de coerência. Essa tendência a racionalizar e atribuir
ordem a estímulos irracionais é tão poderosa e automática, está tão incorporada
em nossa maquinaria cognitiva, que a empregamos para apreender e interpretar o
mundo, detectar coerência inclusive donde não há nenhuma, acreditar na
existência de “evidências” inexistentes e criar mecanismos para validar
racionalmente nossos juízos, crenças e preferências. E não é que queiramos ver
tudo de forma tão racional; simplesmente o vemos dessa forma. (Gilovich, 2009)
Segundo, está o fato de que não somente padecemos das denominadas “ilusão de
validez” – isto é, a falsa crença na fiabilidade de nosso próprio juízo (D.
Kahneman, 2011) – e “tendência de confirmação” – ou seja, da tendência a
preferir as interpretações que apoiam ou confirmam nossas próprias
preferências, hipóteses e crenças prévias, independentemente de serem ou não
verdadeiras -, senão também que as pessoas se vêem a si mesmas como objetivas
e, como tal, raramente pensam que sustentam uma crença só porque lhes apetece.
O problema é que este sentido de objetividade resulta ser igualmente ilusório:
ainda que pensem que suas interpretações estão vinculadas estritamente a
critérios e provas relevantes, geralmente não se dão conta de que os mesmos
critérios e provas podem mirar-se desde outro ponto de vista, nem de que há
outros critérios e provas, igualmente pertinentes, que considerar. Como diz
Ziva Kunda (1990), ”... a gente não se dá conta de que o processo (inferencial)
está condicionado por seus objetivos, de que somente estão acedendo a uma parte
de seu conhecimento relevante, de que provavelmente acederiam a diferentes
crenças e regras (de inferência) se tivessem objetivos distintos, e de que
poderiam, inclusive, ser capazes de justificar conclusões opostas em ocasiões
diferentes”.
Sendo assim, o que parece realmente relevante é tratar de incorporar no âmbito
da hermenêutica jurídica uma reflexão e tomada de posição mais esclarecida de
cara com as pesquisas levadas a cabo pelas ciências cognitivas, uma vez que
estas estão começando a tocar questões que antes eram do domínio exclusivo de
filósofos e juristas; questões sobre como a gente toma decisões e o grau em que
ditas decisões são verdadeiramente livres, racionais, objetivas, neutras,
ponderadas... Com a ciência do cérebro moderna claramente estabelecida, é
difícil justificar que nossas teorias hermenêuticas possam “seguir funcionando
sin tener en cuenta lo que hemos aprendido”. (Eagleman, 2011)
Como já dissemos em outro momento, não há dúvidas de que, por razões
históricas, os juristas de hoje não estão bem preparados para unir-se às
inovações procedentes das atuais investigações. Simplesmente relutam em
manter-se ao dia com os desenvolvimentos científicos pertinentes. Também é
certo que deve resultar intimidante, quando se é “jurista” toda a vida,
reconhecer de repente que os neurocientistas, psicólogos, biólogos,
antropólogos, etc., sabem algumas coisas importantes acerca do funcionamento
interno da mente que podem ter um impacto direto sobre tudo o que sabem fazer.
Ninguém quer voltar a começar de novo.
Mas o realmente novo já está aí fora e negá-lo parece ser de um cinismo atroz
e/ou de uma ignorância imperdoável e irredimível. E como a ciência trata todo o
tempo de estender os limites do que se conhece, os juristas que se negam
intolerantemente a admitir sua relevância para o âmbito do direito estão
continuamente sendo empurrados contra uma barreira de ignorância. Quanto mais
ciência sejam capazes de aprender, mais se darão conta do que ainda não sabem,
e da natureza defeituosa do que afirmam saber. Esta perspectiva intelectual
geral, esta consciência do difícil que pode ser saber algo “com certeza”, ainda
que humilhante, representará um importante benefício colateral à tarefa
interpretativa. E seguramente assim será, porque distinguir o que sabemos bem
do que somente cremos que seja certo já é, por si só, um avanço importante.
Como disse com absoluta pertinência Artemus Ward (2009), na maioria das vezes,
não são as coisas que ignoramos as que nos causam problemas; são as coisas que
“sabemos” e não são assim.
Contudo, para lográ-lo é necessário estar alerta às ficções tradicionais da
dogmática jurídica profissional, advertidas já desde há muito tempo atrás pelos
autores mais lúcidos – hoje geralmente relegados ao olvido – entre os teóricos
e filósofos do direito. Não menos indispensável é não deixar-se seduzir tão
pouco pela proliferação em divertimentos essencialmente narcisos-acadêmico, uns
ou outros jogos terminológicos escapistas, que levam a voz cantante nos estudos
atuais para o campo da (meta-) Teoria do Direito: lógica deôntica,
construtivismos racionalistas ou “razoabilistas” (concepções e discussões
messiânicas sobre o que é a “argumentação” jurídica, etc.), teorias sistêmicas,
alternativas, semióticas formalistas em geral, e mais... (... sem excluir os
estudos que fuçam no mare magnum do não menos obscuro que pretencioso palavreio
chamado “pós-modernismo”).
Dito de outro modo, quem se proponha a intervir aí não terá mais remédio que
tomar humildemente em conta tudo isso ou virar às costas à realidade:
consagrar-se a dissimulá-la mediante alguma teorização todo o convenientemente
abstrata e pedante, sob o argumento de que por força da própria formação,
status ou posição sócio-institucional se encontram privados de certa classe de
informação científica. Os estudos provenientes das ciências cognitivas estão
exigindo a gritos um novo despertar da consciência hermenêutica dos juristas,
uma reinvenção ou construção conjunta de alternativas metodológicas reais e
factíveis, compatível com a dimensão essencialmente humana (neuronal) da tarefa
de interpretar, justificar e aplicar o direito.
Isto é, que o historicamente (oficialmente) admitido como “correto” deve ser
redefinido a partir de uma concepção mitigada e revisada da racionalidade
humana. Um novo modelo hermenêutico-interpretativo que, ajustando-se à dimensão
essencialmente humana da tarefa de interpretar, justificar e aplicar o direito
nos proporcione instrumentos mais frutíferos e fascinantes de cultivar o
direito do que essa espécie de hermenêutica jurídica “no vazio” em que todos
nos acostumamos a comprazer-nos nos velhos tempos. Porque por mais que o ser
humano haja adquirido novos e elevados juízos, tenha aprendido a adornar com
“racionalidade” seus mais vivos e prosaicos instintos e pretenda ignorar a
herança animal de seu passado evolutivo, segue sendo um primata.
Muito do que sabemos sobre interpretação e tomada de decisão já cambiou nos
últimos anos e não é possível adquirir uma visão mais ampla e realista do
(epi-) fenômeno jurídico “vegetando en una pequeña esquina del mundo durante
toda la vida” (Mark Twain). Para apreciar verdadeiramente a complexidade da
tarefa interpretativa e o intricado dos processos de decisão, é necessário e de
fundamental importância compreender o quanto podemos estar equivocados e
confundidos pela aparente “evidência” de teorias formuladas por algumas
confrarias de sofisticados hermeneutas, analíticos ou jus-metodólogos.
É chegado o momento de admitir que o direito não poderá seguir suportando, por
muito mais tempo, seus modelos hermenêutico-interpretativos elaborados sobre
construções especulativas ou por mera contemplação da natureza humana, de
assumir o difícil compromisso de abandonar nossa tendência a aceitar com gesto
bovino e mumificar elegantes teorias que nos consolam e que nos fazem sentir
bem, de distanciar-nos das inferências estúpidas, de tratar de adquirir uma
compreensão mais profunda e sólida sobre a condição e a experiência humana, de
questionar nossas antigas, envenenadas e arraigadas suposições e, acima de
tudo, de desafiar o que cremos saber.
Data de acesso:14/03/2013